sábado, 1 de agosto de 2009

Aquele 69

Sessenta e nove foi o ano em que retornei à faculdade de jornalismo da URGS depois de ficar quatro anos fora – ingressara em 64 – e depois de perambular entre um emprego de bancário e uma vida que não tomava rumo. Não me decidia entre o jornalismo ou ir embora do país.

O entusiasmo de calouro logo se desfez com o golpe de 64, minha lua de mel com a universidade foi interrompida pelas prisões e as primeiras cassações de professores. No semestre já tinha cancelado a matrícula.

Voltei em 69 para ver o que sobrara do rescaldo do AI-5. De 68 conservo na memória o ronco dos helicópteros do exército patrulhando as noites de Porto Alegre. Os milicos nas ruas, o cheiro de gás lacrimogênio.

Nos anos seguintes me perdi da minha turma de calouros de 64. Divino Fonseca, Eveline Dagnino, Ademar Vargas, Terezinha Tellini, Sérgio Caparelli, Yara Rech. O Egon (?) Fitzenreuter desapareceu nas sombras da repressão, ele e outros foram sumindo. Reencontrei um dos veteranos de 64, o Enio Squeff nos anos 90, na Praia do Santinho, na casa do Elmar Bones, o Bicudo.

Março de 69. Sala de aula do curso de jornalismo. Reencontro alguns colegas da turma de 64 e um aluno novo, Nei Duclós. Amizade à primeira vista, humor direto e espontâneo.

O marasmo pós-AI5 nos empurra para novas buscas, cinema, literatura, poesia. Longos papos nas repúblicas da Cidade Baixa, nos apês alugados, nas festinhas de fim de semana, no CA da Filosofia e da Arquitetura, badalações festivas nos bares da Osvaldo Aranha.

Vamos conhecendo as caras daquele tempo e as novas amizades surgem. Sonia Renner, Zélia Leal, Nazaré, Taba Ruas, Letânia Menezes, Paulo Burd, Marco Celso, Marlene Cohen, Ana Viola e muitos outros de quem infelizmente não lembro mais o rosto ou o nome.

Em junho daquele ano já estávamos saturados da família, do golpe, da universidade. Eu, da faculdade e do emprego de bancário. Nós, daquela escuridão sem fim. Aí tomamos a decisão: vamos viajar. De carona, de qualquer jeito. Pra onde? Para a Bahia. Quem vai? Marco Celso, Nei e a namorada Inês e eu.

A grandeza de São Paulo me assustou. Fiquei doente, com febre, de cama, dois dias no alojamento do Estádio do Pacaembu onde conseguimos pousada.

No Rio, encontramos o sol, o calor e o final da viagem. Em Ipanema, na Rua Farme de Amoedo, na cobertura de Raminhos, o entalhador, conhecemos outro Brasil, da arte genuína e expontãnea e um estilo de vida onde havia lugar para a liberdade.

Pendurei almoço no Varanda e beijei a boca da mineira Rita. Fomos detidos pela polícia do Exército, que queria saber por que usávamos roupa militar – uns coletes que ganháramos de alguém. Medo, os astronautas pisando na lua, eu mais o Nei e o Marco Celso dentro da casamata do Forte de Copacabana, lá fora o sol, as ondas e os biquínis. Foi meu primeiro cagaço da ditadura.

Fiquei no Rio até o final de julho vendo o Pasquim aumentar explosivamente a tiragem a cada edição, 150 mil, 160 mil , 170 mil, ouvindo Janis Joplin e Jimy Hendrix sem parar no meio de toda aquela fumaça que subia e descia de Woodstock.

De volta a Porto Alegre encontrei o Nei e o Marco Celso às voltas com seus blocos de poemas, um lendo para o outro o que acabara de escrever. Os poetas chegavam. Eduardo San Martin, Gilberto Gick, Nazaré, Miguel Ramos, Luiz de Miranda.

Depois das aulas e do almoço no RU, recitávamos nossos poetas prediletos e pichávamos os que julgávamos medíocres, tudo entre quatro paredes do apê, sentados em colchões no chão. Neruda (Veinte poemas de amor y una canción desesperada), Lorca (Los cien enamorados duermen para siempre), Wamosy, Quintana, Drummond, Gil, Caetano, Gal, as músicas, os livros e os filmes proibidos, ouvíamos contar que alguns de nós iam a Buenos Aires para poder assistir “Laranja Mecânica” do Kubrick.

Sentia inveja, ódio, frustação: era falta de sexo. Começamos a transar com as colegas de faculdade, com as namoradas, com as empregadas que passeavam na Redenção nos domingos à tarde. Era a revolução sexual que chegara, mas nós ainda não tínhamos nos dado conta.

Expressei minha solidão, naquele nosso jeito debochado – que era quase uma atitude existencial, ou talvez uma espécie de estilo de grupo - inventando uma paródia curta de um verso do Antonio Maria: “ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de Baudelaire”, logo repetido ad nauseam pela tribo toda. O versinho correu mundo. Muitos anos depois me surpreendi com o Paulo Francis repetindo o mesmo bordão no programa da GNT Conexão Manhatan. Há pouco fiquei sabendo que um poeta de Brasília – Nicolas Behr - usa, desde 79, a mesma paródia como criação poética, trocando apenas o “baudelaire” por “nicolas behr”.

Fiquei marcado pelo apelido Bodelére por muitos anos e ainda tem gente daquela época que me conhece mais pelo apelido que pelo nome.

E foi também naquele 69 que, numa manhã qualquer, acompanhei o Nei, o Marco Celso e a Nazaré até a Praça da Alfândega e lá estavam pendurados no varal as folhas com os poemas.

Sentia um prazer imenso vendo a surpresa no rosto das pessoas parando para ver aquilo tudo. Fui espectador e testemunha. Vi nascer “Outubro” e “Tombam”. Ouvi a voz dos poetas lendo os poemas e vi as mãos nervosas escrevendo sobre o papel.

Mais tarde eu também escreveria meus primeiros poemas temporões. Os poemas deram frutos.

Um comentário: