quinta-feira, 6 de agosto de 2009

DESCENDO ATÉ O MAR DE SAL

Deixamos para trás a intensa luminosidade e a arquitetura branca de Jerusalém e lá fomos nós, um bando de turistas deslumbrados dentro de um ônibus com ar refrigerado – a temperatura diurna em Israel é seca e elevada, em torno de 30 a 35 graus no outono – baixando por uma estrada escarpada, dando voltas e mais voltas, descendo lentamente a íngreme cordilheira montanhosa do planalto da Judéia. A estrada é magnífica, sinalizada com cores rutilantes. A pista é um tapete negro, dá a impressão que a camada asfáltica foi colocada naquela semana.

Ao lado da estrada, acampamentos de beduínos, bedu, no jargão árabe-israelense. Em volta dos acampamentos - cabras, camelos, crianças brincando. Muitas voçorocas, que são barrancos erodidos por súbitas chuvaradas, raras na região, mas muito fortes.

Meia hora depois estamos chegando na região mais profunda do planeta, 400 metros abaixo do nível do mar. Ao longe, um fio d`água de não mais de 20 metros de largura, o rio Jordão, serpenteia pelo relevo avermelhado do vale e desemboca mansamente na água serena do Mar Morto, ou Mar de Sal, Yam HaMélach em hebraico.

A cidade mais próxima é Jericó, onde funciona o milionário cassino que Arafat construiu com dinheiro doado pelos governos da União Européia. Não entraremos em Jericó. Desceremos em direção ao Sul, costeando o Mar Morto. Na outra margem, a uns 15 km, além das montanhas cor de tijolo, está a Jordânia.

Do lado de cá, junto à estrada, nos acompanha outra cadeia de montanhas. Como estamos ao lado destas montanhas, separados delas por algumas centenas de metros, podemos apreciar mais de perto o relevo áspero e terroso, os tons cambiantes de luz provocados pela incidência solar. O avermelhado de um platô muda para o violáceo de um precipício, que se transforma em dourado sanguíneo e na elevação seguinte o tom se modifica para outra nuance entre o cobre, o vermelho e o rosáceo.

A margem do mar vai se alargando e então vemos um bosque de tamareiras e logo a entrada para um hotel, um dos muitos resorts do Mar Morto: massagem de lama, caminhadas, banho de água mineral a 39 graus, repouso e refeição. Mas tudo isso seria depois de subir até Massada, a última fortaleza tomada pelos romanos nas terras do antigo Israel.

Antes do resort o ônibus desvia para uma estrada em direção às montanhas, onde nos aguarda o kibutz de Ein Guédi, o Olho do Cabrito. Ein Guédi tem uma das mais preciosas fontes de água de Israel. Foi numa de suas grutas que o jovem guerreiro Davi se escondeu da perseguição que lhe movia Saul, o rei.

Quem sente a beleza dos 150 salmos que Davi escreveu, mal imagina o quanto ela oculta do talento guerreiro do escritor. Davi dominava todas as armas de guerra da época, a lança, a espada, o sabre e a adaga, não esquecendo da funda que abateu Golias. Nas cavernas de Ein Guédi ele treinou seus guerreiros para as batalhas que consolidariam o reino, e, de quebra derrotariam Saul, seu perseguidor.

Mas na vida pessoal e afetiva, Davi sofreu e fez sofrer muito e boa parte dessa dor está nos salmos. Traiu e mandou para a morte seu melhor comandante, Urias, para ficar com Batsheva (Betsabé), mulher de Urias e mais tarde mãe de Salomão, o rei. Seus filhos lutavam pelo poder, mesmo com o pai reinando. Um deles, Amnon, violentou a irmã, Tamar. O outro filho, Absalão, vingou o incesto matando Amnon. Absalão levantou um exército contra o próprio pai e acabou morto, apesar de Davi não desejar a morte do filho rebelde. Tremendo drama familiar.

Desembarcamos num gigantesco parque de estacionamento onde deveria haver uns 40 ônibus estacionados – sem exagero – e fomos caminhando até a estação do veículo que nos elevaria, por cabo aéreo até o topo da meseta onde está Massada. O veículo, um teleférico -

é tão grande que cabe de uma só vez mais de 50 pessoas e percorre a distância em dois ou três minutos.

E aqui estou eu nesse sítio histórico e mitológico. Ruínas, aridez, a luz solar cegante, a paisagem grandiosa e lá embaixo o azul escuro do Mar Morto a perder de vista, as montanhas violáceas, o céu - de um azul total, nuvem nenhuma – teto absoluto a proteger nossas cabeças. Estou no cenário da ultima resistência contra o exército romano.

Desembarco do teleférico e da ponte de madeira que leva ao platô, repentinamente meus olhos dão de cara com o fundo do abismo. Lá embaixo, a mais de 300 metros em linha vertical, ainda há sinais do acampamento romano. Numa fração de segundos, como o riscar de um raio, o passado se faz presente aqui e agora. O suor gruda a camisa na minha pele. Por dentro estou gelado de pavor.

O cerco, comandado pelo general Silva durou seis anos e só foi possível penetrar na fortaleza depois que os romanos construíram um aterro que lhes permitiu escalar as muralhas. Mas os soldados romanos não encontrariam nenhum judeu vivo. Estavam todos mortos, quase seiscentos cadáveres. O suicídio coletivo foi um recado taxativo: era preferível morrer do que ser escravo de Roma, pois este era o destino dos prisioneiros.

Nos altos de Massada caminha-se em silêncio respeitoso. Alguns conversam à meia-voz e se ouvem apenas as palavras do guia. Sopra uma brisa refrescante, mas a atmosfera é tensa, pesada. Quase dois mil anos depois da tragédia, uma energia insólita ainda permeia nossos passos por entre os escombros das mikvaot (*) ressequidas, onde as crianças e as mulheres de Massada tomaram seu derradeiro banho ritual.

Não me lembro de ter feito nenhum esforço físico extra naquele dia, mas ao descer do teleférico me senti completamente exausto, sem forças. No resort, vou direto para o banho termal. Deito-me numa esteira e durmo quase que imediatamente.

Alguém me acorda meia hora depois e me chama para o refeitório. Não tive ânimo para mais nada. Muitos foram caminhar ao encontro da lama terapêutica do Mar Morto - e a tradicional foto do turista boiando na água lendo jornal - onde a intensa salinidade não permite a submersão.

Fico deitado numa esteira na varanda do resort, espiando Massada no alto à minha esquerda e o mar à direita. No retorno à Jerusalém, já no crepúsculo do dia, meu pensamento continua naquela fortaleza destruída pelos romanos há 1923 anos atrás, enquanto nosso guia nos dá as últimas instruções antes de retornarmos ao hotel. Ao lado do ônibus em movimento, como que nos acompanhando, rente às montanhas da Judéia, uma serena lua cheia nos observa.

(*) piscinas para banho ritual. Singular: mikvah

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