sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Pela Via Maris atravessando o Armaggedon

Tiberíades, de manhã

Há dois mil anos a Via Maris partia de Cesaréia, na beira do mar, subia a encosta da planície de Shefelá, deixando à esquerda a meseta do Carmelo, nos contrafortes do Vale de Jezreel, cortando solenemente o Armagedon, ou Megguido, uma planície devastada pelo sol, onde hoje, depois que os israelenses drenaram a área, crescem lavouras de trigo, centeio e girassol.

Dali a estrada toma o rumo das colinas da Galiléia, costeando o Lago Tiberíades, passando ao lado dos Picos de Hittin, onde Saladino, aliás Salah-Ha-Din, derrotou definitivamente os cruzados. De Hittin, a rodovia atravessa as montanhas do Golan , entra na Síria e vai até Damasco, completando a ligação entre o Oriente Profundo e o Mediterrâneo.

Ao longo da estrada atual, a cada quilômetro emerge da terra nua e crestada a tubulação de água que atravessa Israel de norte a sul. Essa água sai do Lago de Tiberíades, aquele mesmo onde o apóstolo Pedro, aliás Simão Pedro, pescava - e vai sendo distribuída para todos os rincões do país, em tubulações cada vez menores. Quando a água chega no pé da planta, é controlada por um sistema de relé, que desliga quando chove. Quando não chove, goteja dia e noite, mantendo tudo verde, desde as alfaces da horta do kibutz até o gramado dos hotéis de turismo praiano em Tel Aviv.

Atravessamos velozmente as lavouras sulcadas do Vale do Armaguédon e eu me pergunto se não haveria um lugar melhor para acontecer a decantada batalha final, assinalada pelas profecias para ocorrer nesse mesmo vale no final dos tempos. Por enquanto, apenas um ou outro trator agrícola arrasta-se pachorrento, preparando o solo para a próxima safra. Pelo menos aqui, neste vale pretensamente apocalíptico, os arados insistem em substituir a espada.

Continuando pela Via Maris, a Estrada do Mar, logo nos deparamos com a riqueza milenar do Oriente, a oliveira. Centenas, milhares de oliveiras vão cobrindo de verde as encostas. De repente, no meio dos olivais, um posto de gasolina ou uma agência bancária surpreendem os visitantes. No período romano a Via Maris era totalmente calçada com pedras e só terminava em Damasco, a uns 90 km adiante.

A primeira parada do roteiro é Nazaré, administrada pela Autoridade Palestina. Nas cidades árabes as casas não tem telhado. O teto serve de cisterna para colher a eventual água da chuva. Nazaré deve ter uns 40 mil habitantes, vive do turismo, a parte central está tomada pelo comércio de suvenir. Faz um calor quase insuportável, as ruas não tem uma sombra, não há uma árvore onde alguém possa proteger-se do sol incandescente da Galiléia.

Não consigo ficar um instante sem a proteção dos óculos escuros. Bebo água mineral a cada 10 minutos. Depois de uma rápida caminhada decido retornar ao conforto do ar condicionado do ônibus. Charlie, o guia, retorna com o resto da turma,

e ao me ver prostrado na poltrona, grita dizendo que eu estou pronto para passar um dia no deserto!

Uma hora depois, de volta à Via Maris, avistamos ao longe o azul do Mar de Tiberíades - Kinéret em hebraico, Tiberíades é a nomenclatura grega da época quando o uso dessa língua era universal e Roma e Atenas e o império estavam nas mãos de Tibério.

Aqui também os morros estão sempre cobertos pelas oliveiras. O ônibus vai descendo em direção a Cafarnaum (Kfar Nahum), a Aldeia de Naum, nossa primeira parada junto às águas tranqüilas desse lago histórico e bíblico.

De onde estamos não se vê areia nem praia, a água bate diretamente no penhasco. Na rocha é bem visível a marca do nível da água, dois metros mais baixo, devido ao excessivo consumo dos últimos anos. Me diz o Charlie que a conta de água em Israel é três a quatro vezes mais alta do que a taxa de eletricidade, o que é bastante compreensível, neste país onde a água não cai do céu. E quando cai é recolhida e conservada em reservatórios e cisternas.

Novo desfile de ruínas históricas em Cafarnaum: sinagogas milenares, destruídas por seguidas guerras. Templos cristãos com inscrições em grego antigo. Restos de tumbas com a data precisa do nascimento e morte de seus ocupantes.

De Cafarnaum à cidade de Tiberíades, há uma profusão de arbustos floridos nos dois lados da estrada, dando um aspecto ajardinado à rodovia. A cidade está comprimida entre a montanha e o mar de água doce. Casas magníficas foram construídas em terraços em toda a extensão da montanha circundante. E novamente a arquitetura absolutamente branca das cidades israelenses domina a paisagem.

Depois de visitar uma loja de diamantes lapidados, seguimos em direção ao sul do Kinerét, onde o Jordão retoma seu leito rumo ao Mar Morto. As margens desse estreito curso de água são protegidas por uma densa e alta mata ciliar. Dessa forma a água do Jordão está sempre fria, devido ao sombreado do arvoredo que a circunda nas duas margens.

O Jordão é o paradeiro de milhares de turistas evangélicos que ali vem renovar o batismo em suas águas. Nessas “estações” de batismo há naturalmente um comércio intenso de suvenir. Nos restaurantes, o prato tradicional é o peixe de São Pedro, uma carpa que é pescada em abundância no Tiberíades. É de fato muito saborosa, frita ou assada.

De repente uma chicotada sonora estilhaça nossos ouvidos. É um jato da força aérea israelense patrulhando a área. Todos olham para o céu, mas não se vê nada. Quando o estampido nos atinge a aeronave já passou. Voltamos à nossa carpa frita, comodamente sentados numa mesa de varanda do restaurante à beira-mar.

Fiz camaradagem com um jovem casal de engenheiros italianos. São de Roma e claro, falam italiano o tempo todo e comigo arranham o inglês. Lá pelas tantas acabei confessando minha origem peninsular pelo lado materno. Me arrependi de ter revelado esse detalhe, porque os dois passaram a falar só italiano comigo. Mas foram uma boa companhia durante o tempo que estivemos juntos.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

DIÁSPORA DE MUITAS MORADAS


Com exceção de minha mãe - nascida e criada no Passo do Lageadinho, em Encantado, endereço cuja lembrança a deixava tomada por imensa nostalgia - pertencer a alguma querência nunca fez sentido para mim, meus irmãos ou meu pai.

Quando me perguntavam de onde eu era, sentia um certo constrangimento e, no mais das vezes, até conseguir explicar que tinha nascido em tal lugar mas que já morara em quatro ou cinco outros lugares diferentes, a conversa já tinha perdido a graça.

Meu pai nasceu no interior de Montenegro, no distrito de Brochier. Detalhe: um incêndio teria destruido o cartório do lugar e assim seu Arno nunca conseguiu retirar uma segunda via da certidão de nascimento. Mas identidade e documento nunca lhe faltaram.

Desde muito jovem, treze ou catorze anos, o ainda adolescente Arno Holderbaum foi o que chamamos hoje de livre e independente. E com condução própria. A cavalo, percorreu boa parte da Serra Gaúcha, que nos anos trinta era uma teia formada por centenas de vilas e colonias interligadas por um emaranhado de picadas e estradas precárias, um desafio épico para os raros motoristas de então.

Seu Arno só dispensou o cavalo quando melhorou de vida e casou, indo morar na cidade de Encantado, numa casa comprada com o dinheiro ganho no negócio das pedras semipreciosas, que ele já então industrializava numa oficina de lapidação, instalada naquela cidade.

Desse momento minha mãe me contou a última lembrança de Bailongo, o alazão que me carregou quando eu ainda usava fraldas.

Eu já era bem grandinho e minha mãe, católica, queria me batizar contra a vontade do marido - que se dizia protestante e com uma postura acentuadamente anticlerical. Acontece que o padre do lugar nega-se a me batizar, por tomar conhecimento de que meu pai, além de não ser católico, tinha se recusado a casar em cerimônia religiosa.

Dá-se que seu Arno e o padre encontram-se por acaso, numa das estradas, ambos a cavalo. O padre, mal cumprimenta, vai direto ao assunto, procurando se explicar e defendendo, naquele caso, as posições e as normas da Igreja.

Leigo, mas conhecedor de alguns fundamentos republicanos, seu Arno respondeu na bucha que filho dele "não precisava de batismo" e que ele dispensava toda e qualquer religião, principalmente aquela que obrigava um homem "a andar vestido de saia". Desnecessário dizer que os padres, naquele tempo, ainda usavam batina.

Daí para o desentendimento aberto foi uma faísca. O padre, ofendido com a audácia daquele forasteiro, também parte para a agressão verbal.

Outros passantes param para assistir à discussão e, diz minha mãe que lá pelas tantas, meu pai não se contém, puxa do chicote, joga o braço para trás, esticando o látego ao máximo e bate com toda força no lombo do cavalo do padre, fazendo o animal disparar. O padre cai literalmente do cavalo, sendo logo socorrido e levado para a cidade. É possivel que essa tenha sido a causa de mais uma mudança de lugar na vida da família de Arno Holderbaum. Mas ninguém até hoje me confirmou.

domingo, 6 de setembro de 2009

TREM DA INFÂNCIA


Fiz algumas viagens de trem, inesquecíveis. A primeira delas foi no verão de 53, nas férias escolares, quando conheci Porto Alegre pela primeira vez. Eu tinha passado no exame de admissão, que era uma espécie de vestibular para o ginásio, quando ainda faltava um ano para completar o primário, ou seja, ao final do quarto ano primário, entrei direto no curso ginasial do Colégio Santo Antonio em Garibaldi, feito que encheu de orgulho meu pai e inchou meu ego a mais não poder.
Como incentivo ao meu esforço e também para poder custear meus estudos, meu pai decidiu pleitear uma bolsa na Secretaria de Educação da Capital. Saímos de tarde, no "Passageiro", como chamávamos o trem que fazia a linha Porto Alegre-Caxias do Sul.
Nos primeiros 60 quilômetros o comboio desceu gemendo entre os cortes dos morros, chiando os freios nos declives.
Quando terminou a serra e de repente chegamos na planície, já quase em Montenegro, a paisagem vai ficando suave e a máquina acelera pelo vale plano do rio Caí. Vem então muitas pontes metálicas, com suas treliças quadriculadas cortando velozes minha retina, como um rolo de filme rodando no projetor.
A partir de São Leopoldo, já noite alta, um mar de luzes cada vez maior e mais intenso seguia junto com a ferrovia. O trem, a toda máquina, acompanhava a estrada asfaltada - novidade para mim - coalhada de automóveis, caminhões e ônibus, e já não parava mais nas pequenas estações desativadas. Éramos apenas alguns passageiros no nosso vagão nos derradeiros quilômetros antes de chegar na parada final.
E foi um pouco antes de chegar na estação de Navegantes que eu tive uma das mais belas visões noturnas do final da minha infância. O Grande Pássaro Metálico pousado no hangar iluminado do Aeroporto Salgado Filho: um gordo, imenso e magnífico DC-3, manobrando lentamente pela pista iluminada na noite intensa daquele iesquecível verão de 1953, se despedindo dos meus doze anos.