segunda-feira, 31 de agosto de 2009
sábado, 29 de agosto de 2009
UM CASAMENTO E DOIS CAVALOS
Aos 13 anos saiu da casa paterna para seu primeiro emprego que, por sinal, abominou para o resto da vida. Foi trabalhar como ajudante numa ferraria, emprego ainda sem carteira assinada - na época não existiam as leis trabalhistas instituidas logo em seguida por Getulio - labutando das sete à sete, com meia hora para o almoço.
Pediu demissão no mesmo dia em que recebeu o primeiro salário. Com o dinheiro comprou um cavalo, seu primeiro instrumento de trabalho autônomo. Sobreviveu por mais de dois anos vendendo fumo em corda e bilhete de loteria nas vendinhas de beira de estrada ou nos acampamentos de trabalhadores, que nos anos trinta abriram as estradas de macadame nas colonias da região serrana.
Mais tarde comprou dois cavalos marchadores, "Douradilho" e "Bailongo", referência de seus gostos tangueiros. Nessas andanças, conheceu parte da serra gaúcha, até as margens do Taquari.
Nessa região foi definitivamente atraído pelo comércio de pedras, na época conhecidas como semipreciosas, que eram achadas quase a flor da terra no Vale do Rio Fão, próximo a então vila de Nova Brescia, minha terra natal, distante uns 30 km de Encantado, onde meu pai conheceu minha mãe num baile de ano novo.
A história desse encontro e do posterior casamento tem versões contraditórias.. Uma delas diz que meu pai praticamente impôs a união, cercando a noiva por todos os lados, contrariando a vontade da família dela.
A outra versão conta que a corte do pretendente foi bastante hábil. Já tendo visto a pretendida e com ela trocado olhares, meu pai mandou um emissário com um recado perguntando se poderiam dançar no tal baile de ano novo, posto que minha futura mãe era viúva de um primeiro casamento e essa condição exigia uma formalidade rigorosa para os costumes daquele tempo e lugar.
De culturas e religiões diferentes - ele protestante, ela católica - era quase natural que haveria oposição das famílias. Estavam apaixonados, me disseram vários contemporâneos - e o casamento foi inevitável. Casaram apenas no civil, o que equivalia a um escândalo para a época. As religiões tiveram que esperar.
terça-feira, 25 de agosto de 2009
(Me voy de lunas)
Estou de luas
Minhas luas
Me voy de lunas
Cães de lua me cercam
Estou no centro das mordidas
Todas impostas
Todas muito bem postas
As luas vem e vão
E logo voltarão
Minhas luas
Me voy de lunas
No verão profundo
Deep summer
Você sussurrou
E depois partiu
Sem dizer adeus
Ouviram-se apenas
Gritos e sussurros
No verão profundo
Verano sureño
Aquele verão perdido
Voando nas asas
De un tango portenho
deep summer,
você gritou
pela vez derradeira
então dei-me conta
os gritos estão sempre
com decibéis a mil
no inconsciente coletivo
na memória coletiva
o velho-novo povo
sobrevive
no girar das mós
en la movida de la luna
minhas luas
estoy de lunas
me voy de lunas
sexta-feira, 21 de agosto de 2009
O QUE EU MAIS GOSTAVA
De ambos os lados da estrada, imensas plantações de milho acompanhavam o lento trajeto, cintilando à luz do sol, embalada pelo vento suave da manhã.
A casa - ainda está de pé - é uma construção terminada em 1909 - toda em estilo vêneto rural, erguida em dois pisos, com parede de pedra de um metro de largura protegendo a adega do piso térreo, onde meu avô armazenava vinho em tonéis da altura de uma porta.
Nos fundos da casa crescia um pomar imenso com todas as frutas da região, ao lado de um parreiral subindo a encosta do morro. E no meio do pomar, descendo a montanha em direção a casa, um aqueduto desembocava num largo tanque caseiro de lavar roupa, com seu sonoro ruído de ´agua corrente. Do tanque, o fio de água descia para a cozinha e dali para o curral lotado de porcos, galinhas, patos e marrecos.
E quase chegando à margem do riacho, um prado verde se abria ladeado por renques de árvores altas e copadas, abrigando em sua sombra os animais de tração da propriedade.
Nona Maria era o apelido familiar de minha vó materna Maria Fontana Bergamaschi, que o destino ou a falta de água tratada tornou viúva de repente, deixando-a com o encargo de chefiar uma imensa família, com três filhos homens ainda solteiros e mais seis filhas, algumas adolescentes e outras ainda crianças.
Meu avô, Carlos Bergamaschi, morreu de tifo no verão 24 ou 25, no apogeu dos 40 e poucos anos de vida, agricultor já bem sucedido, dono de seu nariz e de sua terra, mas que sucumbiu a uma súbita e mortal febre tifóide, que na época não tinha cura.
Nascido em Gazzuolo, uma aldeia da província de Mantova, no norte da Itália, no ano de 1879, meu avô abrasileirou o nome para Carlos quando aqui chegou, com a idade de 14 anos. Emigrou com a família, saindo do porto de Gênova, na terceira classe de um navio superlotado de camponeses sem terra. Nunca em toda a história da Itália camponesa, jamais um agricultor de Gazzuolo fora dono de sua própria gleba de terra.
Desembarcaram no cáis e Porto Alegre, numa manhã fria de julho de 1893. No ar já se pressentia o cheiro de pólvora da Revolução Federalista que logo iria explodir de norte a sul do país.
Subiram o rio Jacuí, depois o Caí, até Montenegro. Dali escalaram a serra em carroça de boi e montaria de mula até o posto de recepção aos imigrantes na Linha Forqueta, entre Caxias e Farroupilha. Receberam ferramentas e uma escritura de propriedade de 24 alqueires de terra no município de Encantado, mais precisamente no Passo da Linha Lageadinho, a mais ou menos cinco quilômetros da sede municipal.
As primeiras casas, de pau a pique e sapê, fora construidas em madeira recolhida no mato circundante (e bota mato nisso) onde havia animais selvagens de espécies hoje quase desaparecidas. Como proteção, as casas eram cercadas com paliçada, cercas de pequenos troncos enlaçados un nos outros. À noite havia sempre alguém de sentinela, mantendo uma fogueira acesa.
Assim a gente espantava as feras, dizia minha avó, que carregou por toda a vida na lembrança o rugido noturno da onça pintada rondando faminta a casa frágil do Passo do Lageadinho.
Nona Maria faleceu em 1979, com 96 anos de idade.
terça-feira, 18 de agosto de 2009
ALFABETIZADO NA MARRA
Na primeira infância tínhamos rádio em casa. Só meu pai ligava o aparelho para escutar notícias e música. À noite sintonizava as rádios argentinas e uruguaias para ouvir tango. Não me lembro de ter ouvido narração de futebol. Só mais tarde, quando eu já estava no curso primário, mas então já não tínhamos rádio em casa e eu ouvia o do vizinho.
Em Carlos Barbosa foi a primeira vez que me lembro de ter escutado um narrador esportivo. Foi quando escolhi o time para o qual viria a torcer pelo resto da minha vida. Foi uma decisão fruto de um desafio, no meu primeiro dia de aula no Grupo Escolar de Carlos Barbosa, era março de 1951. No recreio, um cara de boné e com um jeito de patrão da área – Domingos Baldasso - me interpelou, perguntando pra que time eu torcia.
Não fazia a menor idéia do time que eu torcia. Não me interessava por futebol, no jornal que, de vez em quando meu pai trazia pra casa, minha preferência ia para os anúncios dos filmes que passavam na Capital, anúncios que eu gostava de recortar e que depois guardava
numa caixa de madeira junto com meus objetos pessoais.
Respondi com outra pergunta ao meu interlocutor: quem era o campeão? O campeão era o Colorado, então eu estratégicamente me declarei colorado a partir daquele momento, numa decisão de ímpeto irreversível e definitivo. Antes daquela decisão não me recordo de jamais ter visto uma fotografia do time colorado. Meu pai, que mais tarde fui saber que era gremista – ignorava solenemente o esporte bretão, como diziam os locutores esportivos.
Ser colorado ou gremista nos dava uma identidade naquelas paragens isoladas da serra gaúcha dos anos 50. Passei a acompanhar a trajetória do meu time escutando os jogos no rádio do vizinho.
domingo, 16 de agosto de 2009
PORQUE EU SOU EXIGENTE
(tributo a Mário Quintana)
Quando eu me for
Para o outro lado
Peço, por favor,
Encarecidamente, gente:
Não me aplaudam
Não batam palmas
Não batam palmas
E principalmente
Não batam palmas
pois de tal sono eterno
Minha alma malcriada
Pode despertar
muito mal-humorada
Que se ouça apenas o canto
De algum passarinho distraído
E o sussurro de um vento repentino
Flanando por entre os ramos do arvoredo
Que não soem instrumentos
Que ninguém cante ou declame
Que cochichem banalidades
Fiquem à vontade
Falem do tempo
E de coisas triviais
Para que meu espírito assustado
Por tal situação mortificante
(mas não menos exigente)
Possa por fim ouvir sossegado
O suave, o sutil
O não repetido frêmito
Da natureza em abandono
sexta-feira, 14 de agosto de 2009
EUROPA, FRANÇA E GARIBALDI
O que mais me faz lembrar da França – onde nunca estive, mas já passei perto – é o maio de 68, que atingiu em cheio minha iniciação política de estudante universitário. Aquele maio ressuscitou as esperanças num mundo melhor – anarquista, por que não? – mas também apagou a imagem libertadora e democrática que eu tinha do presidente Charles de Gaulle, quando nos reduziu a uma única e preconceituosa expressão: chienlit, ou na linguagem dos que não admitem oposição: baderna.
Naquele momento de Gaulle deixou de ser um dos meus heróis da resistência francesa à opressão nazista e passou a representar o que havia de pior na direita mundial. E quem poderia transformar-se em herói naquela França anterior ao horror nazista? Alfred Dreifuss condenado injustamente por traição à França que ele amava e servia como o mais fiel de seus filhos. E Jean Moulin, combatente e organizador da Resistência, cujo triunfo não conseguiu presenciar.
Na minha infância e adolescência, passadas na Serra Gaúcha no início dos anos cinqüenta, a França era presença cotidiana no nome de uma variedade de uva, de casca durinha, a “francesa”, com a qual se fazia um vinho de mesa, simples e delicioso.
Depois, na marca “Georges Aubert”, de vinhos espumantes, produzidos por uma família de vinicultores emigrados da França do pós-guerra, na então pequena cidade de Garibaldi, onde morei até o ano de 1957.
Naquele ano, o paraninfo da minha turma de ginásio foi nada mais, nada menos do que o próprio monsieur Georges Aubert, simpático cidadão francês, que patrocinou meu primeiro porre de champanhe, exatamente no dia da formatura. Éramos provincianos e nos deslumbrávamos com a cortesia e a boa educação daqueles europeus. E como era linda e charmosa aquela França burguesa!
Mas o que seria a França sem Robespierre, sem Marat, sem Danton, ou sem a fúria proletária da Comuna de Paris? Não teríamos história, talvez nem civilização, nem arte, nem literatura, nem cinema. Outras indagações povoariam minha cabeça nos anos seguintes.
O que seria a nossa oprimida adolescência sem as fantasias que nos despertavam os olhares transgressivos de Brigite Bardot? O que saberia eu da contribuição francesa à paz mundial, se não tivesse lido as páginas imortais de “Os Thibault”, a inesquecível trilogia de Roger Martin du Gard? E se meus ouvidos jamais tivessem escutado as vozes inconfundíveis de Edith Piaff e Charles Aznavour ?
Minha lista de símbolos da França perene ainda incluiria muitos outros nomes. Just Fontaine, o maior goleador de todas as Copas. “Jules e Jim”, Magali Noël, Jean Louis Trintignant, Jules Dassin, “Rififi”, Pierre Barouh. E ela, eternamente bela, Caterine Deneuve. E, como disse Ettore Scola, quando terminou de filmar “Casanova e a Revolução” (“La Nuit de Varennes”): basta, fico por aqui.
quarta-feira, 12 de agosto de 2009
ANGELA ALICE E O TREM HÚNGARO
Angela Alice foi minha primeira namorada da infância. Morava ao lado do velho cinema da pequena villa de Carlos Barbosa que era então um aglomerado de casarões na rua central e algumas dezenas de casas modesta s no entorno. Ao longodo então segundo distrito de Garibaldi corriam os trilhos da estrada de ferro, atravessando e dividindo o povoado ao meio.
O chefe da estação era o seu Noveli, pai de Angela.
Tudo girava na chegada do trem, que vinha de Porto Alegre, subindo a serra. Ouvia-se o apito na Ponte Seca, entre onze e onze e quinze da manhã. Aos poucos a estação se enchia de gente. A máquina entrava na gare resfolegando fumaça, seu Noveli aguardava na plataforma com o protocolo estendido preso a um pequeno círculo de arame no alto da mão, o maquininista com o corpo para fora da janela pegava o papelucho ar.
Ritual diário de chefe de estação, como também era o toque no sino, anunciando a parada do comboio. Enquanto os passageiros desciam e subiam do trem, eu oferecia pastéis e salgadinhos, que trazia numa cesta presa ao pescoço. Foi meu primeiro trabalho remunerado, que não durou mais de um mês. Não fui um bom vendedor. Comia muitos pastéis, que eram descontados na féria do dia.
Em "Amarcord" do Fellini, o povo de Rímini tem um deslumbramento quando o "Rex", o grande transatlântico, "orgulho do regime" , passaria pela costa do balneário. São cenas patéticas. Nós, em Barbosa, também tivemos esse tipo de êxtase, só que de orgulho ferroviário quando, nos ultimos anos da década de 50, a cidade recebeu a passagem do célebre Trem Húngaro, um luxo para aquela época. Vimos o monstro chegar e parar na estação, conhecemos por dentro e por fora, mas eu, particularmente, nunca viajei nele.
No velho cinema, um casarão de madeira, vi meus primeiros filmes coloridos: "Ali Babá e os quarenta ladrões", com Toni Curtiss e Janet Leigh. E também meu primeiro filme proibido, "Arrroz Amargo", com a estonteante Silvano Mangano, mostrando as pernas com o vestido preso na cintura, tremendo momento erótico do filme.
Meu romance com Angela Alice, absolutamente platônico nos nossos 9 ou dez anos de idade - deve ter sido por volta de 1951 ou 52 - teve seu climax na sessão em que vimos "Amanhã será tarde demais". Angela e sua mãe - senhora de portentosa gargalhada, todo cinema sabia quando ela estava na sala se a fita era comédia - sentaram-se na minha fren-
te assim que começara a sessão.
Agarrei suavemente os cabelos de Angela por alguns segundos. Foi a primeira vez que toquei nela. A segunda e última foi quando a família dela se mudou para Santa Maria. Nos despedimos na estação com um aperto de mão. Nos correspondemos por carta por algum tempo e depois perdi o contato.
O cinema de Barbosa não tinha nome, mas ninguém se importava. Bem mais interessante que o nome era a sirene que soava tres vezes antes de iniciar a sessão. Eram tres longos uivos espaçados por cinco minutos entre cada um e que alcançavam até os mais distante casebres da então vila de Carlos Barbosa.
Um pouco antes de nos mudarmos, eu e Angela Alice descobrimos um depósito de livros ou o que restara de uma antiga biblioteca, nos fundos do casarão que abrigava o cinema.
Uma descoberta que nos tirou o fôlego, porque, além dos livros, seria nosso esconderijo secreto, onde pod[iamos conversar e dividir nossa solidão pré-adolescente.
Quando retornei a Carlos Barbosa, mais de cinquenta anos depois, nada mais restara do cinema, nem da casa onde minha familia morava. A estação ferroviária hoje é um centro cultural. E dentro dela funciona o cinema de arte da cidade, certamente bem mais organizado e moderno, como toda Barbosa é hoje em dia. Uma cidade moderna, rica e ao mesmo tempo pacata e ordeira, orgulho de seus habitantes e que encanta quem a conhece pela primeira vez. Ou a revê depois de cinco décadas.
N. da R.: A foto de Silvana Mangano é uma gentileza do Diário da Fonte (www.outubro.blogspot.com), um achado precioso do jornalista e escritor Nei Duclós, incentivador número um deste espaço, inaugurando o visual deste meu blog.
RIO TAQUARI
(para minha mãe e meus tios maternos)
Rio Taquari das Antas
Que estranho e remoto destino
Corre em teu leito desfeito
Por venenos
E meus banhos de menino
Rio Taquari
Serpente silenciosa e líquida
Descendo a Serra dos Aparados
Indiferente ao progresso
De Lajeado e Estrela
Onde já foste selvagem e bruto
Ainda teimas com tuas barrancas
Abrigando galhos e sementes
E velhos troncos errantes
Ah, antigo e doce Taquari das Antas
Por Muçum e Encantado
Passando vagaroso por Roca
E o Passo do Corvo
Nada devolverá a fúria decidida
Das tuas súbitas enchentes
Nem a limpidez revolta
De certas correntezas de verão
Rio Taquari
Que nasces e morres mil vezes
Na memória dos velhos colonos
Cantar-te-ei uma vez mais
Antes que chegue a noite distante
Em que só restará de ti
A areia fina de teu fundo
Refletindo o eterno brilho das estrelas
Foto: o rio, entre Muçum e Encantado
segunda-feira, 10 de agosto de 2009
POEMA INFANTILPARA ISABELA WAINSTEIN MILLMANN
Se transforma por tabela
Em muitas Isabelas
Todo mês tem nova Isabela
Que além de bela
Fala isabelês sem sotaque
Mas Isabela tem mais uma
Que também é Isablues
Canto que cura nossa alma
E assim prossegue
A magia cotidiana de Isabela
De repente Isabala
Tão doce nesse inverno
Feito o sustento
Que nos concede o Eterno
E tem também Isabola
Que deita e rola
Redonda e alegre
No playground da fantasia
E assim a cada dia
Surge outra Isabela
Cada vez mais bela
Mudando a tabela
Numa eterna mutação
Trazendo mais esperança
Revivendo nossa infância
E aquecendo os corações
sábado, 8 de agosto de 2009
PAI AVENTURANTE(*)
(para meu pai Arno Holderbaum)
Meu pai viajou de menino
Palmilhando infinito
Deserto-pampa solito
Altíssima serra
Onde a terra
Era companheira
De antiga capa de chuva
Cortada por adaga
E vento
Nem patrão nem carteira
Nunca teve
Identidade alguma
Sina de gente
Vertente
Estancada menina
Seu lar primeiro
Foi relento parceiro
Trotando sonâmbulo
No perau das estrelas
Passou sua vida-minuto
Varando os sete cantos
De léguas e canhadas
Em lombo de zaino e malhado
Casaco e chapéu surrado
Cavaleiro secreto
De um tempo encantado
(*) misto de aventureiro com viajante
sexta-feira, 7 de agosto de 2009
REFLEXÕES DE UM PITZAIOLO TEMPORÃO
Tudo começou numa conversa informal com Moacir Kulisz, empresário e velejador, que me forneceu a receita da massa e até hoje, depois de dois anos, não parei de assar a preciosa semolina.
Já passei adiante a receita para amigos e familiares, Mas são raros os que encaram essa artesania de frente, que é trabalhosa e cheia de detalhes. Meus filhos já metem a mão direitinho na massa, promovendo altos festivais entre colegas e amigos.
Me recuso terminantemente a repetir a receita aos mais preguiçosos, que sempre me pedem, mas nunca encaram de frente a questão. Sempre tem alguém que “perdeu” ou “esqueceu” a receita, que eu pacientemente passei por escrito ao suplicante.
Além de vontade e gosto por esse artesanato, parece que um certo talento também se faz necessário. Tem gente esforçada, mas que não consegue esticar ou assar direito uma rodela de massa.
Sua feitura é algo básico para um bom pitzaiolo. São pequenas coisas que a gente vai descobrindo no cotidiano do fazer. E só descobre quem faz.
Eu diria, contrariando algum gourmet, que os temperos são secundários. Confesso que não suporto substituir a mussarela pelo requeijão e desprezo solenemente o milho enlatado. E por favor, não me falem em ervilha.
Alitchi, atum, azeitona preta, manjericão, presunto defumado e tomate seco detêm as preferências da maioria, mas continuo assando, na intimidade do meu forno, a marguerita tradicional, ou um palmito com orégano, coisa mais leve.
Enfim, são preferências e cada um tem a sua.
Também acabou a ortodoxia nas técnicas de assar. Além do forno a lenha, descobrimos. eu e minha turma do Campeche, que se pode assar – heresia! – na churrasqueira, bastando apoiar uma pedra de granito sobre duas hastes de ferro, ou sobre uma grelha, sempre mandando lenha por baixo.
Cuidado para não exagerar na lenha. A pedra pode rachar e os ferros fundem a uma certa temperatura, como aconteceu com a grelha favorita do Arnaldão Milman, célebre churrasqueiro do Rio Tavares e mestre das costelinhas na brasa.
Pitza, doce pitza. É muito tentador carregar nas pitzas doces, principalmente depois de provar uma série de salgadinhas.
Admito, como diria o imortal Gildo de Freitas, que ainda estamos vacilantes nas combinações de frutas com marmeladas ou doce de leite. Banana tem que ser muito, mas muito madura mesmo e cozida com antecedência, apenas com uma pitada de sal – para abrir o açúcar natural da fruta – dois cravos e um pouco de água, conforme a clássica dica de Sonia Hirsch.
Uma mistura muito apreciada é acrescentar uma colher de sorvete sobre a pitza de banana e canela em pó. Show de bola.
OS SETE PILARES
A base da pizza são sete ingredientes. Se faltar um deles, certamente será um mau começo pra quem quer se dedicar com ganas ao ofício: alho, azeite de oliva, massa, tomate fresco, queijo mussarela, manjericão e orégano. Pra mim, vinho é o acompanhamento ideal. Sim, você dirá: mas a base não é a clássica “Margherita”, com as cores da bandeira italiana, homenagem de algum esperto pizzaiolo à esposa do Rei Vittorio Emanuele? Sim, direi eu, mas os sete pilares continuam sendo os ingredientes top. O resto ou o que vem depois é com você.
quinta-feira, 6 de agosto de 2009
CANÇÃO DO MEIO DIA
Chanson d’amour
Nuvens cinzentas
Ondas verdes
Murmúrio do mar
Na noite dos meus sonhos
Areia fina entre teus joelhos
Canto do mar
Canção de amor na manhã
Brilhando na água clara
Da piscina
E a audácia de ser
Apenas um vento sutil
Insistente a deslizar
No arbusto
Jogo de palavras
Entre as embarcações do mar
Momentos são e então
Alegria, alegria
Surge a melodia do teu cedê
Cantada das cantadas
Cântico dos cânticos
Deste novo dia
DESCENDO ATÉ O MAR DE SAL
Ao lado da estrada, acampamentos de beduínos, bedu, no jargão árabe-israelense. Em volta dos acampamentos - cabras, camelos, crianças brincando. Muitas voçorocas, que são barrancos erodidos por súbitas chuvaradas, raras na região, mas muito fortes.
Meia hora depois estamos chegando na região mais profunda do planeta, 400 metros abaixo do nível do mar. Ao longe, um fio d`água de não mais de 20 metros de largura, o rio Jordão, serpenteia pelo relevo avermelhado do vale e desemboca mansamente na água serena do Mar Morto, ou Mar de Sal, Yam HaMélach em hebraico.
A cidade mais próxima é Jericó, onde funciona o milionário cassino que Arafat construiu com dinheiro doado pelos governos da União Européia. Não entraremos em Jericó. Desceremos em direção ao Sul, costeando o Mar Morto. Na outra margem, a uns 15 km, além das montanhas cor de tijolo, está a Jordânia.
Do lado de cá, junto à estrada, nos acompanha outra cadeia de montanhas. Como estamos ao lado destas montanhas, separados delas por algumas centenas de metros, podemos apreciar mais de perto o relevo áspero e terroso, os tons cambiantes de luz provocados pela incidência solar. O avermelhado de um platô muda para o violáceo de um precipício, que se transforma em dourado sanguíneo e na elevação seguinte o tom se modifica para outra nuance entre o cobre, o vermelho e o rosáceo.
A margem do mar vai se alargando e então vemos um bosque de tamareiras e logo a entrada para um hotel, um dos muitos resorts do Mar Morto: massagem de lama, caminhadas, banho de água mineral a 39 graus, repouso e refeição. Mas tudo isso seria depois de subir até Massada, a última fortaleza tomada pelos romanos nas terras do antigo Israel.
Antes do resort o ônibus desvia para uma estrada em direção às montanhas, onde nos aguarda o kibutz de Ein Guédi, o Olho do Cabrito. Ein Guédi tem uma das mais preciosas fontes de água de Israel. Foi numa de suas grutas que o jovem guerreiro Davi se escondeu da perseguição que lhe movia Saul, o rei.
Quem sente a beleza dos 150 salmos que Davi escreveu, mal imagina o quanto ela oculta do talento guerreiro do escritor. Davi dominava todas as armas de guerra da época, a lança, a espada, o sabre e a adaga, não esquecendo da funda que abateu Golias. Nas cavernas de Ein Guédi ele treinou seus guerreiros para as batalhas que consolidariam o reino, e, de quebra derrotariam Saul, seu perseguidor.
Mas na vida pessoal e afetiva, Davi sofreu e fez sofrer muito e boa parte dessa dor está nos salmos. Traiu e mandou para a morte seu melhor comandante, Urias, para ficar com Batsheva (Betsabé), mulher de Urias e mais tarde mãe de Salomão, o rei. Seus filhos lutavam pelo poder, mesmo com o pai reinando. Um deles, Amnon, violentou a irmã, Tamar. O outro filho, Absalão, vingou o incesto matando Amnon. Absalão levantou um exército contra o próprio pai e acabou morto, apesar de Davi não desejar a morte do filho rebelde. Tremendo drama familiar.
Desembarcamos num gigantesco parque de estacionamento onde deveria haver uns 40 ônibus estacionados – sem exagero – e fomos caminhando até a estação do veículo que nos elevaria, por cabo aéreo até o topo da meseta onde está Massada. O veículo, um teleférico -
é tão grande que cabe de uma só vez mais de 50 pessoas e percorre a distância em dois ou três minutos.
E aqui estou eu nesse sítio histórico e mitológico. Ruínas, aridez, a luz solar cegante, a paisagem grandiosa e lá embaixo o azul escuro do Mar Morto a perder de vista, as montanhas violáceas, o céu - de um azul total, nuvem nenhuma – teto absoluto a proteger nossas cabeças. Estou no cenário da ultima resistência contra o exército romano.
Desembarco do teleférico e da ponte de madeira que leva ao platô, repentinamente meus olhos dão de cara com o fundo do abismo. Lá embaixo, a mais de 300 metros em linha vertical, ainda há sinais do acampamento romano. Numa fração de segundos, como o riscar de um raio, o passado se faz presente aqui e agora. O suor gruda a camisa na minha pele. Por dentro estou gelado de pavor.
O cerco, comandado pelo general Silva durou seis anos e só foi possível penetrar na fortaleza depois que os romanos construíram um aterro que lhes permitiu escalar as muralhas. Mas os soldados romanos não encontrariam nenhum judeu vivo. Estavam todos mortos, quase seiscentos cadáveres. O suicídio coletivo foi um recado taxativo: era preferível morrer do que ser escravo de Roma, pois este era o destino dos prisioneiros.
Nos altos de Massada caminha-se em silêncio respeitoso. Alguns conversam à meia-voz e se ouvem apenas as palavras do guia. Sopra uma brisa refrescante, mas a atmosfera é tensa, pesada. Quase dois mil anos depois da tragédia, uma energia insólita ainda permeia nossos passos por entre os escombros das mikvaot (*) ressequidas, onde as crianças e as mulheres de Massada tomaram seu derradeiro banho ritual.
Não me lembro de ter feito nenhum esforço físico extra naquele dia, mas ao descer do teleférico me senti completamente exausto, sem forças. No resort, vou direto para o banho termal. Deito-me numa esteira e durmo quase que imediatamente.
Alguém me acorda meia hora depois e me chama para o refeitório. Não tive ânimo para mais nada. Muitos foram caminhar ao encontro da lama terapêutica do Mar Morto - e a tradicional foto do turista boiando na água lendo jornal - onde a intensa salinidade não permite a submersão.
Fico deitado numa esteira na varanda do resort, espiando Massada no alto à minha esquerda e o mar à direita. No retorno à Jerusalém, já no crepúsculo do dia, meu pensamento continua naquela fortaleza destruída pelos romanos há 1923 anos atrás, enquanto nosso guia nos dá as últimas instruções antes de retornarmos ao hotel. Ao lado do ônibus em movimento, como que nos acompanhando, rente às montanhas da Judéia, uma serena lua cheia nos observa.
(*) piscinas para banho ritual. Singular: mikvah
quarta-feira, 5 de agosto de 2009
TAMBORES DISTANTES
E então gritávamos
Canções líricas
Poemas épicos
E recitávamos versos
Do Rei Davi
(“beija-me com o beijo
da tua boca
pois mais embriagadores
do que o vinho
são teus amores”)
Mas tudo isso já era
Pois isso tudo
Era por demais conhecido
Aconteceu noutra era
Era quando ouvíamos
O rugido enlouquecido
Das então muito elétricas
Harpas de Hendrix
Arrepiando frementes
Nosso cabelo comprido
E agora
Qual Fênix urgente
Portando garra mortal
Retorna again and again
Nada de Novo cavalgando
No dorso virtual
Nos transformando em reféns
Enclausurados na casca
Do ovo da serpente
E então quando
Alguém me chamou
De saudosista
E quando você me lembrou
Que deixei alguma pista
Dos meus tempos de trotzquista
Ocorreu-me estar
Sempre e cada vez mais
E outra vez
De novo sob o sol
Beijando o beijo
De tua boca
Bebendo o vinho
Dos teus amores
E dançando ao som
De distantes tambores
terça-feira, 4 de agosto de 2009
A COLONIA CLÁSSICA
A serra gaúcha foi colonizada basicamente por camponeses italianos vindos do Vêneto, Trento e Lombardia. Os primeiros grupos chegaram a partir de 1875. A região não tinha estradas, todo o transporte nos primeiros anos era feito no lombo de animais de carga, através de picadas abertas na mata.
A inauguração da estrada de ferro em 1909 impulsionou a colônia em todos os aspectos. Foi o fim do isolamento e o começo de uma nova era. A Colônia primitiva e isolada começaria então a sedimentar as bases para a pequena indústria, que mais tarde, nos anos 50 e 60 se projetaria para todo o estado e o país: metalurgia metal-mecânica, produção de vinhos e espumantes, indústria moveleira.
Aquele tempo (1909 até fins de 1970) foi o que eu chamo de período clássico da colônia, que me viu nascer e crescer até a adolescência, quando então dela me despedi em 57. Foi a colônia movida a trem de ferro, que só parou de andar no início dos 70, quando arrancaram seus trilhos .
A serra gaúcha nos deu vários clássicos, sim. Na culinária de inverno, o reconfortante brôdo, servido nos dias e noites gelados de maio a setembro.
O brôdo é um caldo de galinha, que se toma acompanhado de muito queijo ralado, pão e carne lessa, que são os pedaços fervidos da galinha, fria e salgada fora da panela. Uma das variações do brôdo é a sopa de capeleti ou de agnolini, pequenas pelotas recheadas de frango ou ricota.
Outro clássico que praticamente desapareceu por falta de matéria prima – a caça - é a passarinhada frita comida com polenta e molho.
E finalmente, mas não em definitivo, o super-clássico galeto com polenta frita e salada de radicci temperada com vinagre e pedacinhos de bacon frito, que na minha infância era chamado de “al mena rosto”, ou frango assado na brasa.
No futebol também tivemos clássicos: O Serrano x Esportivo em Bento, o Guarani x Juventude em Garibaldi, o Serrano x Juventus de Carlos Barbosa e o maior de todos, o Fla x Ju em Caxias, Flamengo x Juventude, que depois virou Ca x Ju.
A era clássica da serra gaúcha acabou juntamente com o fim do transporte ferroviário e o início do asfalto. Começa nos 70 o período da plena indústria e de seus valores agregados. O galeto vira um prato estadual, gaúcho, se incorpora às churrascarias porto-alegrenses e ganha o Brasil e o mundo. A culinária e o artesanato são agregados ao turismo nascente e a renda das famílias aumenta.
Minha geração é uma das últimas que viveu aquele período na serra gaúcha. Sou um sobrevivente da Colônia Clássica e da enchente de 41. Duas características daquela era: não havia asfalto nem televisão. Mas tinha cinema e muitos! Já falei do Trianon e do Rex em Garibaldi, verdadeiros palácios de fina acústica e paredes acolchoadas de veludo?
Não tinha, asfalto, é verdade, mas as estradas da serra que ligavam as cidades eram de macadame, secas no verão e firmes na temporada de chuva, mas nas colônias miúdas, quando chovia,os caminhões, os carros e os táxis entravam no calçamento das cidades espalhando lama no paralelepípedo das ruas, chacoalhando os pneus envoltos nas correntes, que era a única maneira de não ficar atolado em alguma biboca no meio dos vales profundos do rio das Antas.
O renque de eucaliptus
Passara a guardar o pouco dinheiro economizado na venda das colheitas debaixo do colchão, já que, como se sabia, os bancos não eram de confiança. E então, de uma hora para outra, Berto foi sendo tomado por forte sentimento de desconfiança, de tudo e de todos.
Seu quarto ficava sempre fechado à chave, que ele trazia na guaiaca, um cinto largo de couro com vários compartimentos, onde também guardava moedas, palha e fumo, um coldre e bainha para arma branca.
Também era voz corrente na família que a falta de mulheres na vida de Berto seria uma das causas de sua loucura. Mas o tempo – e o vento principalmente – se encarregariam de negar
essa tese.
No final dos anos 40 a Vila do Lageadinho – onde moravam quase todos os parentes de Berto – se erguia na margem direita do rio Taquari, que nasce nos Aparados da Serra e desce naquela região de Encantado no sentido norte-sul. Na altura do Lageadinho o vale do rio forma uma grande planície de quase dois quilômetros de várzea, ladeada por montanhas dos dois lados. No vale, nos meses de outubro e novembro, a força do vento canalizado pelos morros balança os extensos milharais plantados logo depois do final do inverno.
Na noite em que Berto teve o grande surto, uma ventania fora do comum sacudiu casas e paióis por longas horas durante a madrugada. De manhã encontraram Berto espumando pela boca, em delírio, disparando palavras sem nexo no escasso dialeto vêneto do vilarejo. Ele estava junto a um comprido renque de mudas de eucalipto que plantara freneticamente desde o início da noite até pouco antes do sol nascer.
O Lageadinho ficou em estado de choque. Onde se viu, plantar eucalipto de noite. Berto plantara uma extensa fileira de mudas na extrema do potreiro que acompanhava a estrada, numa linha reta de quase quinhentos metros.
De bruços ou de barriga para cima, não saiu mais dali. Soltava um uivo agudo e praguejava contra Deus, a Virgem Maria e a Igreja. Primeiro chamaram o padre, que preferiu rezar à distância daquela alma danada. Sem conseguir resultados imediatos, o padre decidiu voltar à cidade, de onde retornou em seguida com um médico, um enfermeiro, uma ambulância e quatro soldados da Brigada. A chegada da polícia e do aparato médico trouxe Berto de volta à realidade.
Instintivamente puxou do facão, correndo para o descampado do potreiro, brandindo a lâmina em defesa. Foi cercado, laçado como um boi brabo, levado de arrasto e empurrado com violência para dentro da ambulância.
Berto foi levado para Porto Alegre onde foi internado no Hospício do Partenon. Lá ficou por mais de três meses. Um dia fugiu, atravessou a cidade a pé, de madrugada. Vadeou a nado os rios Gravataí, Sinos e Caí, sempre caminhando de noite e dormindo de dia no mato, escondido da polícia e dos enfermeiros do hospício, que ele imaginava em sua perseguição.
Depois de vagar dias e noites pelos campos da Depressão Central , Berto reencontrou o Vale do Taquari, sempre guiado pela vazante do Jacuí.
Chegou no Lageadinho depois de 150 quilômetros de caminhada, morto de fome, os pés em carne viva. Parecia um bicho envolto em trapos. Temerosa, a família não permitiu que dormisse na casa. Arrumaram um quartinho no paiol de milho e lá ficou Berto.
Raramente saia. Comia a comida e trocava a roupa que as irmãs traziam, mas não freqüentou mais a casa da família. Nunca mais foi à missa nem à bodega do vilarejo, mas ajudava na época de plantio e colheita. Criou fobia de polícia. Bastava que dissessem, mesmo de brincadeira, “olha a polícia” que ele saía rápido em direção ao paiol.
O tempo foi passando e duas décadas mais tarde a estreita fileira de mudinhas de eucalipto, plantada por Berto na noite em que enlouqueceu - transformou-se numa imponente muralha de troncos com até vinte e cinco metros de altura. Eram quase trezentas árvores enfileiradas de uma ponta a outra da cerca.
Nas tempestades, enquanto o vento ondulava os galhos mais altos, Berto perambulava por entre os troncos, admirando lá de baixo a copada revolta das árvores.
Pelo resto de seus dias Berto passou vigiando quase que diariamente a fileira de troncos, matutando em silêncio e observando a direção dos ventos.
Berto e sua loucura tranqüila passaram a fazer parte dos costumes e hábitos do Lageadinho, como a festa do padroeiro, as enchentes e as colheitas. O tédio, a indiferença e o pouco caso das pessoas nunca deram importância ao plantio do eucalipto, gesto que ficou conhecido apenas como mais uma extravagância daquele maluco solitário.
Berto morreu num dia qualquer dos anos 70. Sua parte na propriedade da família foi dividida entre os irmãos e seus poucos pertences doados à capela da vila. De Berto mesmo, a única lembrança que ficou foi o renque de eucalipto.
Alguns anos depois, quando a prefeitura do município mandou asfaltar a estrada do Lageadinho, o renque inteiro foi posto abaixo. Todos os eucaliptos foram cortados. Ficaram apenas as toras decepadas a menos de 50 centímetros do chão
Os dias se passaram e aos poucos um sentimento de estranheza foi tomando conta das pessoas. A paisagem era outra. Por mais que ignorassem era evidente que alguma coisa ali fazia falta. Uma muda e perturbadora sensação passou a tomar conta das pessoas, como se o corte do renque tivesse contrariado algum desígnio secreto.
A confirmação do pressentimento veio na primeira ventania daquele mesmo ano. Sem a defesa do quebra-vento natural formado pelos troncos e galhos dos eucaliptos, os ventos arrasaram metade da vila, derrubando paredes, destelhando casas e pondo abaixo árvores isoladas, arrastando gado e cercas.
No dia seguinte Lageadinho parecia saída de um terremoto ou de um incompreensível e inexplicável desastre. Era a primeira vez em mais de oitenta anos de vida que o lugar sofria uma catástrofe daquele porte, muito pior que a enchente de 41 que cobriu de água toda a várzea.
E então para o povo do Lageadinho ficou claro o gesto de Berto, quando, naquela longínqua madrugada de depois da guerra ele decidira plantar o renque de eucaliptos.
Berto intuira, na sua loucura, que o renque seria uma defesa para a vila, uma barreira contra os ventos. E guardara sua intenção em silêncio, como se ninguém mais do que ele merecesse a dádiva e a dimensão daquele ato, só agora completamente entendido e revelado à sua gente.
Nos anos seguintes as toras decepadas brotaram novamente e as árvores foram renascendo. O renque de eucaliptos se refez e está de pé até hoje.
sábado, 1 de agosto de 2009
Vinhotrip
“penso che um sogno così
non ritorni mai più”(*)
cantava o mano Lui
sentado sobre a mesa de mármore
do Café Luna Park
um copinho só
pelamor de São Jacó
suplicava Marcelino Gutierrez
na frente do Café Luna Park
esta noite dormirei
com a noite dormirei
ramo, folha
flor e fruto
mosto
e um golpe pronto
galopando na garganta
o gosto de causos
e viagens
e uma bala de garrucha
cavalos, carretas e dornas
sobem pela Avenida Rio Branco
aromas de malvasia
esta noite dormirei
com a noite dormirei
Dura excursão
De sonhos concretos
Navegando por vinho novo
Encharcado de peitos
E depois vai dançando
Vai descendo e aquecendo
Lembranças
De invernos esquecidos
E vai perseguindo minha alma
Vertiginosamente habitando
Cada dobra das vísceras
E os lugares mais estranhos
Desta Colônia da Boa Vista
Do Vinte Sete
Esta noite dormirei
Com a noite dormirei
Salta solta uma rolha
Solta salta a rolha
Grita Moacir Holderbaum
No instante quebradiço
Do quartzo cortante
Cristais e ametistas
Tintas de negro azul
Vinificado
Explodindo em luz
Na manhã matina
Esta noite dormirei
Com a noite dormirei
Pedra de saibro
Na estrada do Borguêto
Salve Santa Tereza
Onde o rio das Antas se despede
E despenca
Em desespero rumo ao mar
(espuma e bolha
na concha da mão)
esta noite dormirei
com a noite dormirei
Garibaldi contra Bento
Mil novecentos
E setenta e três bêbados
Desfilam por último
Na procissão de São Roque
Já quase em Barbosa
Trovam trova
Em verso e prosa
E na meia-noite fria de julho
Um velho trem fantasma rola
Da Ponte Seca ao Maratá
Pelo caminho sem trilhos
Perseguindo enlouquecido
A estação do Nunca Mais
Esta noite dormirei
Com a noite dormirei
(enquanto isso
entre o Doze e o Barão
come solto um trissete
dois copos , uma garrafa
salame, graspa
e um pila)
porta via um bel biquier(**}
pelamor di San Pier
(*) primeiro verso da canção “Volare”, de Domenico Modugno, hit parade dos anos 60
(**} copo de vinho, no dialeto vêneto da Serra Gaúcha
Malvasia é uma variedade de uva branca com a qual se faz vinho espumante