Há dois mil anos a Via Maris partia de Cesaréia, na beira do mar, subia a encosta da planície de Shefelá, deixando à esquerda a meseta do Carmelo, nos contrafortes do Vale de Jezreel, cortando solenemente o Armagedon, ou Megguido, uma planície devastada pelo sol, onde hoje, depois que os israelenses drenaram a área, crescem lavouras de trigo, centeio e girassol.
Dali a estrada toma o rumo das colinas da Galiléia, costeando o Lago Tiberíades, passando ao lado dos Picos de Hittin, onde Saladino, aliás Salah-Ha-Din, derrotou definitivamente os cruzados. De Hittin, a rodovia atravessa as montanhas do Golan , entra na Síria e vai até Damasco, completando a ligação entre o Oriente Profundo e o Mediterrâneo.
Ao longo da estrada atual, a cada quilômetro emerge da terra nua e crestada a tubulação de água que atravessa Israel de norte a sul. Essa água sai do Lago de Tiberíades, aquele mesmo onde o apóstolo Pedro, aliás Simão Pedro, pescava - e vai sendo distribuída para todos os rincões do país, em tubulações cada vez menores. Quando a água chega no pé da planta, é controlada por um sistema de relé, que desliga quando chove. Quando não chove, goteja dia e noite, mantendo tudo verde, desde as alfaces da horta do kibutz até o gramado dos hotéis de turismo praiano em Tel Aviv.
Atravessamos velozmente as lavouras sulcadas do Vale do Armaguédon e eu me pergunto se não haveria um lugar melhor para acontecer a decantada batalha final, assinalada pelas profecias para ocorrer nesse mesmo vale no final dos tempos. Por enquanto, apenas um ou outro trator agrícola arrasta-se pachorrento, preparando o solo para a próxima safra. Pelo menos aqui, neste vale pretensamente apocalíptico, os arados insistem em substituir a espada.
Continuando pela Via Maris, a Estrada do Mar, logo nos deparamos com a riqueza milenar do Oriente, a oliveira. Centenas, milhares de oliveiras vão cobrindo de verde as encostas. De repente, no meio dos olivais, um posto de gasolina ou uma agência bancária surpreendem os visitantes. No período romano a Via Maris era totalmente calçada com pedras e só terminava em Damasco, a uns 90 km adiante.
A primeira parada do roteiro é Nazaré, administrada pela Autoridade Palestina. Nas cidades árabes as casas não tem telhado. O teto serve de cisterna para colher a eventual água da chuva. Nazaré deve ter uns 40 mil habitantes, vive do turismo, a parte central está tomada pelo comércio de suvenir. Faz um calor quase insuportável, as ruas não tem uma sombra, não há uma árvore onde alguém possa proteger-se do sol incandescente da Galiléia.
Não consigo ficar um instante sem a proteção dos óculos escuros. Bebo água mineral a cada 10 minutos. Depois de uma rápida caminhada decido retornar ao conforto do ar condicionado do ônibus. Charlie, o guia, retorna com o resto da turma,
e ao me ver prostrado na poltrona, grita dizendo que eu estou pronto para passar um dia no deserto!
Uma hora depois, de volta à Via Maris, avistamos ao longe o azul do Mar de Tiberíades - Kinéret em hebraico, Tiberíades é a nomenclatura grega da época quando o uso dessa língua era universal e Roma e Atenas e o império estavam nas mãos de Tibério.
Aqui também os morros estão sempre cobertos pelas oliveiras. O ônibus vai descendo em direção a Cafarnaum (Kfar Nahum), a Aldeia de Naum, nossa primeira parada junto às águas tranqüilas desse lago histórico e bíblico.
De onde estamos não se vê areia nem praia, a água bate diretamente no penhasco. Na rocha é bem visível a marca do nível da água, dois metros mais baixo, devido ao excessivo consumo dos últimos anos. Me diz o Charlie que a conta de água em Israel é três a quatro vezes mais alta do que a taxa de eletricidade, o que é bastante compreensível, neste país onde a água não cai do céu. E quando cai é recolhida e conservada em reservatórios e cisternas.
Novo desfile de ruínas históricas em Cafarnaum: sinagogas milenares, destruídas por seguidas guerras. Templos cristãos com inscrições em grego antigo. Restos de tumbas com a data precisa do nascimento e morte de seus ocupantes.
De Cafarnaum à cidade de Tiberíades, há uma profusão de arbustos floridos nos dois lados da estrada, dando um aspecto ajardinado à rodovia. A cidade está comprimida entre a montanha e o mar de água doce. Casas magníficas foram construídas em terraços em toda a extensão da montanha circundante. E novamente a arquitetura absolutamente branca das cidades israelenses domina a paisagem.
Depois de visitar uma loja de diamantes lapidados, seguimos em direção ao sul do Kinerét, onde o Jordão retoma seu leito rumo ao Mar Morto. As margens desse estreito curso de água são protegidas por uma densa e alta mata ciliar. Dessa forma a água do Jordão está sempre fria, devido ao sombreado do arvoredo que a circunda nas duas margens.
O Jordão é o paradeiro de milhares de turistas evangélicos que ali vem renovar o batismo em suas águas. Nessas “estações” de batismo há naturalmente um comércio intenso de suvenir. Nos restaurantes, o prato tradicional é o peixe de São Pedro, uma carpa que é pescada em abundância no Tiberíades. É de fato muito saborosa, frita ou assada.
De repente uma chicotada sonora estilhaça nossos ouvidos. É um jato da força aérea israelense patrulhando a área. Todos olham para o céu, mas não se vê nada. Quando o estampido nos atinge a aeronave já passou. Voltamos à nossa carpa frita, comodamente sentados numa mesa de varanda do restaurante à beira-mar.
Fiz camaradagem com um jovem casal de engenheiros italianos. São de Roma e claro, falam italiano o tempo todo e comigo arranham o inglês. Lá pelas tantas acabei confessando minha origem peninsular pelo lado materno. Me arrependi de ter revelado esse detalhe, porque os dois passaram a falar só italiano comigo. Mas foram uma boa companhia durante o tempo que estivemos juntos.
A narrativa plástica, ao mesmo tempo precisa e generosa, nos transporta para aqueles lados que visitaste e resgatas com tanta propriedade. Talento do escritor que agora, aos poucos, mostra sua obra.
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