domingo, 4 de outubro de 2009
O renque de eucaliptos.
Tio Alberto que na família era chamado de Berto foi enlouquecendo silenciosa e completamente logo depois do fim da Segunda Guerra, não por causa da dita guerra ou das perseguições aos descendentes de imigrantes, muito comum naquele tempo, mas porque, dizia-se na família, Berto tinha perdido todo o dinheiro na quebradeira dos bancos e isso, talvez, diziam, tinha afetado irremediavelmente sua cabeça.
Passara a guardar o pouco dinheiro economizado na venda das colheitas debaixo do colchão, já que, como se sabia, os bancos não eram de confiança. E então, de uma hora para outra, Berto foi sendo tomado por forte sentimento de desconfiança, de tudo e de todos.
Seu quarto ficava sempre fechado à chave, que ele trazia na guaiaca, um cinto largo de couro com vários compartimentos, onde também guardava moedas, palha e fumo, um coldre e bainha para arma branca. Também era voz corrente na família que a falta de mulheres na vida de Berto seria uma das causas de sua loucura. Mas o tempo e o vento principalmente se encarregariam de negar
essa tese.
No final dos anos 40 a Vila do Lageadinho onde moravam quase todos os parentes de Berto se erguia na margem direita do rio Taquari, que nasce nos Aparados da Serra e desce naquela região de Encantado no sentido norte-sul. Na altura do Lageadinho o vale do rio forma uma grande planície de quase dois quilômetros de várzea, ladeada por montanhas dos dois lados. No vale, nos meses de outubro e novembro, a força do vento canalizado pelos morros balança os extensos milharais plantados logo depois do final do inverno.
Na noite em que Berto teve o grande surto, uma ventania fora do comum sacudiu casas e paióis por longas horas durante a madrugada. De manhã encontraram Berto espumando pela boca, em delírio, disparando palavras sem nexo no escasso dialeto vêneto do vilarejo. Ele estava junto a um comprido renque de mudas de eucalipto que plantara freneticamente desde o início da noite até pouco antes do sol nascer.
O Lageadinho ficou em estado de choque. Onde se viu, plantar eucalipto de noite. Berto plantara uma extensa fileira de mudas na extrema do potreiro que acompanhava a estrada, numa linha reta de quase quinhentos metros.
De bruços ou de barriga para cima, não saiu mais dali. Soltava um uivo agudo e praguejava contra Deus, a Virgem Maria e a Igreja. Primeiro chamaram o padre, que preferiu rezar à distância daquela alma danada. Sem conseguir resultados imediatos, o padre decidiu voltar à cidade, de onde retornou em seguida com um médico, um enfermeiro, uma ambulância e quatro soldados da Brigada. A chegada da polícia e do aparato médico trouxe Berto de volta à realidade.
Instintivamente puxou do facão, correndo para o descampado do potreiro, brandindo a lâmina em defesa. Foi cercado, laçado como um boi brabo, levado de arrasto e empurrado com violência para dentro da ambulância.
Berto foi levado para Porto Alegre onde foi internado no Hospício do Partenon. Lá ficou por mais de três meses. Um dia fugiu, atravessou a cidade a pé, de madrugada. Vadeou a nado os rios Gravataí, Sinos e Caí, sempre caminhando de noite e dormindo de dia no mato, escondido da polícia e dos enfermeiros do hospício, que ele imaginava em sua perseguição.
Depois de vagar dias e noites pelos campos da Depressão Central , Berto reencontrou o Vale do Taquari, sempre guiado pela vazante do Jacuí.
Chegou no Lageadinho depois de 150 quilômetros de caminhada, morto de fome, os pés em carne viva. Parecia um bicho envolto em trapos. Temerosa, a família não permitiu que dormisse na casa. Arrumaram um quartinho no paiol de milho e láficou Berto.
Raramente saia. Comia a comida e trocava a roupa que as irmãs traziam, mas não freqüentou mais a casa da família. Nunca mais foi à missa nem à bodega do vilarejo, mas ajudava na época de plantio e colheita. Criou fobia de polícia. Bastava que dissessem, mesmo de brincadeira, olha a polícia que ele saía rápido em direção ao paiol.
O tempo foi passando e duas décadas mais tarde a estreita fileira de mudinhas de eucalipto, plantada por Berto na noite em que enlouqueceu - transformou-se numa imponente muralha de troncos com atévinte e cinco metros de altura. Eram quase trezentas árvores enfileiradas de uma ponta a outra da cerca.
Nas tempestades, enquanto o vento ondulava os galhos mais altos, Berto perambulava por entre os troncos, admirando lá de baixo a copada revolta das árvores.
Pelo resto de seus dias Berto passou vigiando quase que diariamente a fileira de troncos, matutando em silêncio e observando a direção dos ventos.
Berto e sua loucura tranqüila passaram a fazer parte dos costumes e hábitos do Lageadinho, como a festa do padroeiro, as enchentes e as colheitas. O tédio, a indiferença e o pouco caso das pessoas nunca deram importância ao plantio do eucalipto, gesto que ficou conhecido apenas como mais uma extravagância daquele maluco solitário.
Berto morreu num dia qualquer dos anos 70. Sua parte na propriedade da família foi dividida entre os irmãos e seus poucos pertences doados à capela da vila. De Berto mesmo, a única lembrança que ficou foi o renque de eucalipto.
Alguns anos depois, quando a prefeitura do município mandou asfaltar a estrada do Lageadinho, o renque inteiro foi posto abaixo. Todos os eucaliptos foram cortados. Ficaram apenas as toras decepadas a menos de 50 centímetros do chão
Os dias se passaram e aos poucos um sentimento de estranheza foi tomando conta das pessoas. A paisagem era outra. Por mais que ignorassem era evidente que alguma coisa ali fazia falta. Uma muda e perturbadora sensação passou a tomar conta das pessoas, como se o corte do renque tivesse contrariado algum desígnio secreto.
A confirmação do pressentimento veio na primeira ventania daquele mesmo ano. Sem a defesa do quebra-vento natural formado pelos troncos e galhos dos eucaliptos, os ventos arrasaram metade da vila, derrubando paredes, destelhando casas e pondo abaixo árvores isoladas, arrastando gado e cercas.
No dia seguinte Lageadinho parecia saída de um terremoto ou de um incompreensível e inexplicável desastre. Era a primeira vez em mais de oitenta anos de vida que o lugar sofria uma catástrofe daquele porte, muito pior que a enchente de 41 que cobriu de água toda a várzea.
E então para o povo do Lageadinho ficou claro o gesto de Berto, quando, naquela longínqua madrugada de depois da guerra ele decidira plantar o renque de eucaliptos.
Berto intuira, na sua loucura, que o renque seria uma defesa para a vila, uma barreira contra os ventos. E guardara sua intenção em silêncio, como se ninguém mais do que ele merecesse a dádiva e a dimensão daquele ato, sóagora completamente entendido e revelado à sua gente.
Nos anos seguintes as toras decepadas brotaram novamente e as árvores foram renascendo. O renque de eucaliptos se refez e está de pé até hoje.
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Achei o máximo este texto. Maravilhoso. Lembra todos os nossos tios loucos, que guardavam segredos nos fundos da casa e sumiam e voltavam de uma hora para outra. Ou tinham acessos de loucura ("voglio una donna"!). Também entendi porque há tanto estrago hoje: tiraram as árvores, ficou o deserto. Textos antológicos neste baú de raridades.
ResponderExcluirFiquei sem computador por alguns dias ultimamente, acontece, e também andei pelejando com o dito.
ResponderExcluirCortaram muito mato, mas hoje tão controlando o corte. E está proibido plantar reflorestamento tipo pinus, exótico. Estive no Lajeadinho e me disseram que a prefeitura paga os proprietários que plantam árvores nativas. Fiquei deveras impressionado com o prefeito de Encantado.
Virson, olha a data! Já passa de 1930! Queremos mais! A massa clama. Abs.
ResponderExcluirAmigo Virson, que maravilha de texto. Lembrei dos tempos distantes e daquele reporter da Zero Hora que tirava preciosidades das velhas Olivettis da redação. Escreva, homem, isso vai dar em livro. Já incluí teu blog entre meus favoritos. Quero mais, quero aprender, abração, Mário Medaglia
ResponderExcluirSempre estamos aprendendo uns com os outros, Mário, desde os tempos de setoristas na ZH e no Santa. Nem imaginas o quanto aprendi contigo, naquelas longas conversas na redação, com o Fedrizzi, o Nei, o Gago, naqueles tempos de medo e confusão, mas também de ousadia e coragem. Grande abraço.
ResponderExcluirUm texto belíssimo e comovente.
ResponderExcluirParabéns.