quinta-feira, 8 de julho de 2010

SOBRE DERROTAS E VENCIDOS

Djalma Santos, Pinheiro, Brandãozinho, Nilton Santos, Castilho e Bauer
Embaixo: Julinho, Humberto, Baltazar, Didi e Maurinho



Minha mais remota lembrança da Copa do Mundo é de 1954. Era um sábado ou domingo, o Brasil iria enfrentar a Hungria pelas quartas de final. Enquanto a família aguardava o início das transmissões pelo rádio , eu preferi , ou melhor, aproveitei minha chance da semana e fui à matinê do Cine Trianon – o único cinema de Garibaldi na época - ver um faroeste, que pelos meus cálculos deve ter sido “Alma de Renegado”, com Randolph Scott.

Quando sai da sala escura alguém me disse que tínhamos perdido por 4x2. Mais um capítulo daquilo que Nelson Rodrigues chamaria de “complexo de vira-latas”. Mais uma derrota, nem tão tremenda como a de 50, mas mesmo assim uma derrota. Diferente dos nossos faroestes , quando o mocinho ganhava todas no final, a realidade, sempre contrariando a ficção, era um filme que não passava pelas nossas cabeças naqueles anos.

Muito tempo depois, ao ler a biografia de Stefan Zweig, “Morte no Paraiso”, de Alberto Dines, eu tomaria conhecimento da real dimensão e de uma outra face do perdedor. Zweig sempre foi obcecado pelo perdedor, pelo derrotado, pelos humilhados. Dizia que estes são os verdadeiros vencedores. Na derrota está a profunda vitória do perdedor, pois dela ele pode retirar forças e dar a volta por cima. Mais ou menos isso. Parece literatura de auto-ajuda, mas o “Fliegender Oestereicher”, o Austríaco Voador, tinha razões que a razão não pode ignorar.

Refugiado do nazismo, Stefan Zweig tinha escolhido o Brasil como asilo, porque simplesmente se encantou por nosso país, pelo povo, pela geografia ainda quase intacta nos anos 30, pelo homem cordial. Logo depois ignorado, desiludido e deprimido pelas trevas triunfantes, escolheu o suicídio. Uma derrota aparente. Nos anos seguintes, seu livro “Brasil, Pais do Futuro”, criticado e desprezado na época, ganharia completo reconhecimento.

Quando Zweig partiu desta, eu mal completara 4 meses de vida e minha mãe lutava com fraldas e panelas numa pequena casa de madeira, alugada por meu pai de algum colono em Nova Brescia. Meu pai, obcecado pela manutenção da casa e a busca da riqueza imediata, cavava uma jazida de ametistas nas margens do Rio Fão, próximo à vila, que então era distrito de Arroio do Meio. Trabalhou como um louco, dizia minha mãe.
Teve sorte também, achou o que buscava, ganhou dinheiro, comprou casa na cidade, perdeu tudo, reergueu-se novamente, botou uma pequena indústria, uma lapidação - que logo após a guerra faliu - em sociedade com um amigo alemão, Julius Wolf, Seu Julio, também refugiado como Zweig , perdido no tempo e na memória como tantas outras figuras da minha infância. Julio Wolf foi o primeiro refugiado que passou por nossa família. O segundo foi Arthur Boehm, casado com minha tia Elly, tio político e pai de meu primo Roberto.

Passaram-se os anos e aí lembro do português com sotaque do meu avô Edmundo, que sempre repetia a frase quando ia contar um causo. “Passaram-se os anos” para este homem que falava duas línguas com absoluta correção gramatical e depois descobri que isto não era tão raro assim naquele tempo. Havia boas escolas, mesmo no interiorzão das colônias. E lia-se. Vovô Edmundo fez o curso de dentista prático- licenciado, estudando com a ajuda de livros didáticos escritos em português e alemão. Aposentou-se no início dos anos cinqüenta.

Então veio 58 e eu já não morava mais nas serranias da minha infância. Em junho daquele ano o potente rádio transistor que escutávamos no salão de leitura do internato – chiava estática por todas as paredes da sala onde nos amontoávamos para ouvir a voz empolgada de Mendes Ribeiro, o famoso narrador esportivo da Rádio Guaiba. “Deus não joga mas fiscaliza” virou mote e máxima para os anos seguintes. Éramos enfim vencedores e pela primeira vez “ a fria Europa” se curvava aos nossos pés. Garrincha, Pelé e Didi deslumbravam os europeus e nós nunca mais nos sentiríamos com complexo de vira-latas.

domingo, 4 de julho de 2010

ANOS DOURADOS

Tito Lang, eu, Martinho Rottmann e Harry Fischer, o Fichinha, colegas de turma do Clássico.
Essa elegância e esse humor eram todo dia assim. Bons tempos. A foto é de 1959, dos arquivos implacáveis do Martinho



Me despedi do mundo da minha infância e adolescência numa manhã de verão. E como na canção de Caetano Veloso, "no dia que eu fui embora, não teve nada de mais". Peguei o trem na estação de Desvio Blauth, município de Farroupilha, e me mandei para a capital.

Meu pai conseguira vaga no Curso Clássico do Seminário Concórdia, uma escola da Igreja Luterana do Sínodo de Missouri. Explico que meu avô paterno era luterano do sínodo alemão dessa mesma Igreja e assim, por caminhos cruzados, tive a oportunidade de estudar num dos melhores colégios de Porto Alegre daquela época.

Assisti aulas com Arnaldo e Donaldo Schueller, Atilio Chemello, Martin Flor, Ernst Rupp (o Velho Alemão), os professores Walther Kunstmann, Paul Schelp, Arno Gueths, Fritz Otten e outros cujo nome não lembro, mas de igual competência.

Passei todos os anos do curso clássico em regime de internato. Aulas de manhã das sete e meia às doze e meia. À tarde e à noite, duas horas de estudo, obrigatório. Folga aos sábados à tarde até domingo às 18h. Tínhamos campo de futebol, quadras de basquete, pistas de atletismo e pavilhão de ginástica coberto. Biblioteca com mais de dez mil volumes, auditório e um piano Essenfelder, laboratório de Física, Química e Biologia, enfermaria, capela com um órgão majestoso onde o Professor Hans Rottmann, em tardes inesquecíveis, nos transportava nas tocatas de Bach.

O colégio tinha uma vista privilegiada. Dos altos da Lucas de Oliveira via-se o velho hipódromo dos Moinhos de Vento, o centro da cidade e o Guaiba a perder de vista. Éramos vizinhos do IPA (Instituto Porto Alegre) e do Colégio Americano, onde todos os anos assistíamos às olimpíadas esportivas metodistas, espichando o olho para as alunas deste último.

Em 60 também concorri a uma olimpíada, mas a estrela do evento - pelo menos para mim - foi Sonia Knack, que seria minha primeira namorada. Ela arrebatou o público interpretando "Pour Elise", de Beethoven, no piano. Nosso namoro durou pouco, as familias interferiram, era tempo de estudo e não de namoro.
Muitos anos depois nos reencontramos e para alívio mútuo conseguimos passar a história a limpo, com saudável nostalgia e muito bom humor.

Enquanto isso, minha lua de mel com a vida cidadã de Porto Alegre ia de vento em popa. No final dos 50 a cidade tinha mais de 40 cinemas em atividade e uma vibrante orquestra sinfônica conduzida pelo maestro húngaro Pablo Komlos, uma personalidade artística sem par e um marco cultural portoalegrense daquele tempo.

O coral do Seminário Concórdia foi escolhido para atuar na ópera "A Flauta Mágica", de Mozart, com a regência do Maestro Komlós. Os ensaios eram no pavilhão de ginástica, com atuação de parte da orquestra. Descobri então a magia da ópera e não perdi mais nenhum ensaio. Acabei decorando trechos inteiros da melodia e do texto em alemão, conservados na memória até hoje.