Embaixo: Julinho, Humberto, Baltazar, Didi e Maurinho
Minha mais remota lembrança da Copa do Mundo é de 1954. Era um sábado ou domingo, o Brasil iria enfrentar a Hungria pelas quartas de final. Enquanto a família aguardava o início das transmissões pelo rádio , eu preferi , ou melhor, aproveitei minha chance da semana e fui à matinê do Cine Trianon – o único cinema de Garibaldi na época - ver um faroeste, que pelos meus cálculos deve ter sido “Alma de Renegado”, com Randolph Scott.
Quando sai da sala escura alguém me disse que tínhamos perdido por 4x2. Mais um capítulo daquilo que Nelson Rodrigues chamaria de “complexo de vira-latas”. Mais uma derrota, nem tão tremenda como a de 50, mas mesmo assim uma derrota. Diferente dos nossos faroestes , quando o mocinho ganhava todas no final, a realidade, sempre contrariando a ficção, era um filme que não passava pelas nossas cabeças naqueles anos.
Muito tempo depois, ao ler a biografia de Stefan Zweig, “Morte no Paraiso”, de Alberto Dines, eu tomaria conhecimento da real dimensão e de uma outra face do perdedor. Zweig sempre foi obcecado pelo perdedor, pelo derrotado, pelos humilhados. Dizia que estes são os verdadeiros vencedores. Na derrota está a profunda vitória do perdedor, pois dela ele pode retirar forças e dar a volta por cima. Mais ou menos isso. Parece literatura de auto-ajuda, mas o “Fliegender Oestereicher”, o Austríaco Voador, tinha razões que a razão não pode ignorar.
Refugiado do nazismo, Stefan Zweig tinha escolhido o Brasil como asilo, porque simplesmente se encantou por nosso país, pelo povo, pela geografia ainda quase intacta nos anos 30, pelo homem cordial. Logo depois ignorado, desiludido e deprimido pelas trevas triunfantes, escolheu o suicídio. Uma derrota aparente. Nos anos seguintes, seu livro “Brasil, Pais do Futuro”, criticado e desprezado na época, ganharia completo reconhecimento.
Quando Zweig partiu desta, eu mal completara 4 meses de vida e minha mãe lutava com fraldas e panelas numa pequena casa de madeira, alugada por meu pai de algum colono em Nova Brescia. Meu pai, obcecado pela manutenção da casa e a busca da riqueza imediata, cavava uma jazida de ametistas nas margens do Rio Fão, próximo à vila, que então era distrito de Arroio do Meio. Trabalhou como um louco, dizia minha mãe.
Teve sorte também, achou o que buscava, ganhou dinheiro, comprou casa na cidade, perdeu tudo, reergueu-se novamente, botou uma pequena indústria, uma lapidação - que logo após a guerra faliu - em sociedade com um amigo alemão, Julius Wolf, Seu Julio, também refugiado como Zweig , perdido no tempo e na memória como tantas outras figuras da minha infância. Julio Wolf foi o primeiro refugiado que passou por nossa família. O segundo foi Arthur Boehm, casado com minha tia Elly, tio político e pai de meu primo Roberto.
Passaram-se os anos e aí lembro do português com sotaque do meu avô Edmundo, que sempre repetia a frase quando ia contar um causo. “Passaram-se os anos” para este homem que falava duas línguas com absoluta correção gramatical e depois descobri que isto não era tão raro assim naquele tempo. Havia boas escolas, mesmo no interiorzão das colônias. E lia-se. Vovô Edmundo fez o curso de dentista prático- licenciado, estudando com a ajuda de livros didáticos escritos em português e alemão. Aposentou-se no início dos anos cinqüenta.
Então veio 58 e eu já não morava mais nas serranias da minha infância. Em junho daquele ano o potente rádio transistor que escutávamos no salão de leitura do internato – chiava estática por todas as paredes da sala onde nos amontoávamos para ouvir a voz empolgada de Mendes Ribeiro, o famoso narrador esportivo da Rádio Guaiba. “Deus não joga mas fiscaliza” virou mote e máxima para os anos seguintes. Éramos enfim vencedores e pela primeira vez “ a fria Europa” se curvava aos nossos pés. Garrincha, Pelé e Didi deslumbravam os europeus e nós nunca mais nos sentiríamos com complexo de vira-latas.