O jogo já terminara e eu me encaminhava para a saída quando vi aquela figura pachorrenta, cigarro fumegando entre os dedos, a contemplar o gramado vazio.
Parado, fixei o olhar naquele terno escuro, achando que era algum sósia, mas não, ele estava lá mesmo, idêntico, com o mesmo olhar bovino a ruminar seus mais sórdidos personagens de “Bonitinha, mas ordinária” e “Os Sete Gatinhos”.
Já sabem de quem estou falando. Por mais absurdo que possa parecer, lá estava eu, no estádio silencioso, diante do fantasma de Nelson Rodrigues, o Anjo Pornográfico.
Pensei até em saudá-lo com uma expressão jocosa, tipo “e aí, cara, descansando à sombra das chuteiras imortais!”, para quebrar o gelo, mas achei melhor não arriscar. Ele poderia me virar a cara, me esnobar, me ignorar, ou pior, desaparecer de vez.
Cheguei mais perto e me sentei a umas quatro cadeiras dele, na mesma fileira. Então ele se virou pra mim e disse com o olhar “sampaku” e a inconfundível voz arrastada:
- O futebol do Avai é uma reinvenção surgida do Nada Absoluto só para contrariar os comentaristas de abobrinhas e emudecer o ego doentio das grandes torcidas. Ái de vós corintianos e flamenguistas de botequim! Esse timinho que não valia uma nota de 10 reais está jogando um futebol luxuoso como sofá de marquês.”
Tossiu devagar e calou-se.
Não havia mais dúvidas. Era mesmo ele. Ou o fantasma dele.
Virou-se novamente na minha direção, e sem me olhar, continuou:
- Faz pouco debochavam desse time dando gargalhadas convulsivas. O Avaí era a Tartaruga Sentada no Poste da Série A. Ninguém sabia como tinha chegado lá mas todos sabiam que ia cair. Pois agora eu digo que a tartaruga criou asas e voa altaneira sobre todos os postilhões da primeira divisão. Eu saúdo a Tartaruga Voadora da Ressacada. Longo futebol a esse Possesso Redivivo que vocês chamam de Muriqui.
Tossiu mais uma vez enquanto esmagava o toco do cigarro com a sola do sapato. Foi se levantando vagarosamente, ajeitou o casaco no ombro, a camisa branca de linho semi-aberta no peito. Já passava da meia noite, o sereno congelava as cadeiras de plástico do estádio mas o fantasma de Nelson não sentia frio nenhum, como se fosse um Vampiro da Transilvânia.
Fomos caminhando devagar em direção a saída, eu na frente, ele um pouco atrás. Me distraí imaginando como estaria o trânsito no Trevo da Seta e quando meu pensamento voltou me dei conta que a figura de terno escuro já tinha desaparecido.
(Floripa, 31 de julho de 2009 -no dia seguinte ao jogo Avai 4, Vitória 0), quinta vitória consecutiva do Leão, após amargar um bom período na laterna do campeonato)