quinta-feira, 8 de março de 2012

O FINO DA PROSA

Marguerite Yourcenar


"Foi por essa época que comecei a sentir-me deus. Não faças confusão: era sempre, era mais que nunca o mesmo homem nutrido com os frutos e os animais da terra, devolvendo ao solo os resíduos desses alimentos, sacrificando ao sono a cada revolução dos astros, inquieto até a loucura quando faltava por muito tempo a cálida presença do amor. Minha força, minha agilidade física ou mental eram cuidadosamente sustentadas por uma ginástica toda humana. Mas que dizer senão que tudo isso era divinamente vivido? As ousadas experiências da juventude haviam terminado, assim como a sofreguidão de viver o tempo que passa. Aos quarenta e quatro anos, sentia-me sem impaciência, seguro de mim, tão perfeito quanto me permitia minha natureza. Eterno. Compreende bem que se trata, neste caso, de uma concepção do intelecto: os delírios, se é que lhes seja dado tal nome, vieram mais tarde. Era deus sinplesmente porque era homem. Os títulos divinos que a Grécia me concedeu depois, não fizeram mais do que proclamar aquilo que, há muito tempo, eu tinha constatado por mim mesmo. Creio que me teria sido possível sentir-me deus até nas prisões de Domiciano, ou no fundo de uma mina. Se tenho a audácia de pretendê-lo é que esse sentimento me parece apenas extraordinário, mas de modo algum único. Outros além de mim o experimentaram e outros o experimentarão no futuro". (Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar)