terça-feira, 8 de dezembro de 2009

EU PERDIDO, ENTRE MEU PAI E BRIZOLA




















Dia da posse de Brizola


Em 58 conheci Brizola em pessoa na minha serrana Garibaldi, num comício noturno, nos altos de um café tradicional da cidade, que ainda tinha sotaque da antiga colônia italiana.

Meu pai era do diretório municipal do PTB (do Getúlio, não da Ivete) e insistia a toda hora que eu deveria conhecer "e me apresentar" ao homem.
- Vai e diz: estou contigo, Leonel!

Eu andava pelos 16 anos, estudava num internato em Porto Alegre e na ocasião estava de visita à família nas férias de julho, mas meus interesses ainda não incluiam a política. Além disso, o tom impositivo das decisões do meu pai já começava a me causar uma inquietação constante e um nervosismo que eu mal conseguia conter ou disfarçar.

Era início da noite, um grande foguetório recepcionou a caravana. Brizola desembarca do carro na frente do diretório, todos querem apertar sua mão. Meu pai me arrasta pelo meio da multidão, passa na frente de alguns correligionários mais deslumbrados e me coloca de frente para o homem e num tom da maior intimidade - não faço a menor idéia se ele tinha alguma chegança no líder, pelo menos até então - enlaça a cintura de Leonel Brizola, exclamando: "Leonel, quero te apresentar meu filho mais velho".

Enquanto me apertava a mão com força, Brizola falou rapidamente alguma coisa que não consegui ouvir direito, devido ao vozerio e ao alvoroço da sala apertada e cheia de gente. No momento seguinte uma pequena multidão já arrastava o homem para fora da sala de onde foi direto para uma sacada do segundo piso do prédio.

Durante todo o comício meu pai não arredou pé da sacada, grudado no homem e gritando de vez em quando "apoiado" e "muito bem, Brizola".

Naquela eleição Brizola ganhou com uma vantagem de mais de duzentos mil votos sobre o coronel Walter Peracchi de Barcellos. E meu pai ganhou uma pequena fortuna apostando com alguns amigos, mas adversários políticos. Era jogo a dinheiro, casado e guardado no cofre do ecônomo do clube social da cidade. De um ganhou dando cinquenta mil votos de vantagem. De outros ganho no taco-a-taco. Dessa vez, Seu Arno ganhou lindo. Mas perderia, e muito nos anos seguintes.

Palanques, cátedras e púlpitos sempre fascinaram Seu Arno. Ele mesmo proferia calorosos discursos e arengas por qualquer motivo. Mas, por culpas do destino ou da vida, tinha um marcado sentimento de inferioridade por não ter estudado em colégio ou faculdade.

E projetava tudo isso com muita ênfase para cima de mim, dia após dia, visualizando uma trajetória para seu primogênito, "futuro bacharel", "brilhante orador", quem sabe, talvez, "um nobre causídico", me encurralando mais e mais para o que ele considerava muito justamente uma carreira de valor.

A pressão começou bem cedo. Eu ainda não terminara o primário e já era compelido, cooptado e instigado a "discursar", a "declamar", a me "posicionar como orador" em aniversários, casamentos e todo tipo de evento que reunisse mais de uma dúzia de pessoas.

Sua primeira providência foi comprar um "Manual do Orador", com discursos prontos para qualquer tipo de efeméride. Minha estréia foi no casamento de um primo, eu deveria ter no máximo uns dez, onze anos de idade.

No meio da festa, meu pai interrompe a música e solicita aos convivas uma pausa para uma homenagem aos noivos. Seu filho, "jovem orador", faria um discurso, como já prometido, em homenagem ao casal nubente.

Dito isto, fez-me subir a uma cadeira, de onde proferi - numa entonação cheia de timbres retóricos e gestos previamente marcados e ensaiados no papel que eu decorara horas antes, não sem deixar de sentir um tremendo nervosismo, por medo de esquecer o texto na hora - minha primeira apresentação em público.

Tudo deu certo, as palavras sairam vibrantes - reconheço que tenho certo talento para a coisa - veio uma tempestade de aplausos. Vi os olhos úmidos de meu pai, a boca semi-aberta em êxtase, a cabeça levemente caída para o lado, os braços abertos em atitude de plena satisfação.

Daí para a glória precoce foi um pulo. Fiquei conhecido como "o guri do Arno, aquele que discursa e declama uma barbaridade".

Algum tempo depois, no Grupo Escolar de Carlos Barbosa fui destacado para ser o marchador-pelotão nos desfiles da Semana da Pátria. E ao final das marchas ao som do bumbo e do tarol, subi aos palanques e declamei um soneto patriótico, arrebatando aplausos e cumprimentos da diretora e das professoras da escola.

Mas, para minha surpresa, nesse dia, Seu Arno ficou em casa me esperando. Não compareceu ao evento. Me cobrou um longo relatório, a marcha, a declamação, os aplausos, quem me aplaudiu, quem me cumprimentou. E também comecei a perceber que o temperamento exaltado da alma paterna já possuia, ao lado das eventuais alegrias, a marca de alguma amargura indelével.



Assim foi esse período da minha infância, mais ou menos nesse tom e ritmo